Rothbard e a perversão de Marx
Michelle Fransan, do Instituto Liberal de São Paulo, publicou um artigo esta semana (“Marx e a defesa da prostituição forçada“, Liberzone, 13 de maio) que supostamente “provava” que Marx defendia a dissolução da família e a prostituição geral forçada. É um meme antigo que se recusa a morrer. É também uma mentira que me força a assumir a posição constrangedora de defender Karl Marx.
Periodicamente, esse argumento parece reviver por propagandistas da “verdade” sobre o comunismo que não ficam contentes em criticar as visões reais de Marx, mas apelam para interpretações péssimas de cartas obscuras para que possam produzir manchetes clickbait para postar em mídias sociais.
Não é surpreendente que Murray Rothbard seja o culpado aqui. Em seu An Austrian Perspective on the History of Economic Thought (volume 2), ele cita e faz uma interpretação patentemente absurda de Marx para pintá-lo não apenas como alguém que defendia quase um estupro coletivo, mas que também estava ciente de que seu sistema destruiria a individualidade de todos.
Alguns anos atrás, um excerto de seu livro foi publicado no site do Instituto Mises Brasil, dando origem a artigos como a reciclagem de Fransan e as centenas de imagens do Facebook que provam que Marx na verdade era o diabo encarnado. Tentarei aqui apresentar uma leitura mais precisa das visões dele.
(Devo também observar que parte do problema são as ridículas “traduções” publicadas pelo Instituto Mises Brasil — se é que podem ser chamadas disso. Em um esforço para tornar seus artigos ainda mais ultrajantes e portanto compartilháveis, os editores do site modificam substancialmente todos os textos que publicam. É um dos motivos por que o artigo de Rothbard ganhou tração em 2012. Por isso, o Mises Brasil é absolutamente imprestável como fonte. Neste caso, os editores do site expandiram os pontos de Rothbard e até estenderam suas citações. O que é ainda mais frustrante é que eles jamais deixam claro quem escreveu qual seção dos artigos — mas simplesmente misturam o que os editores escreveram com os originais. Os artigos do Mises Brasil, portanto, devem ser chamados de montagens em vez de traduções, e devem ser evitados por qualquer um que prefira a fidelidade das traduções em vez de propaganda ideológica.)
De qualquer forma, Rothbard fala sobre o “comunismo grosseiro” descrito por Marx. De acordo com Rothbard, o “comunismo grosseiro” é a primeira etapa da revolução marxista (a ditadura do proletariado). Isso é falso. Marx descreve o comunismo grosseiro negativamente para se opor a ele. Marx afirma que alguns autores comunistas não foram longe o bastante em suas denúncias à propriedade privada e, por isso, suas teorias não eram capazes de superá-la, mas apenas “generalizá-la”. A seguir, uma longa citação do artigo publicado no IMB (bastante diferente do original, embora o argumento seja essencialmente o mesmo no final das contas):
Com efeito, a avaliação de Marx sobre o comunismo grosseiro, a etapa da ditadura do proletariado, não era muito romântica e era ainda mais pesada do que aquela feita por Stein:
Esse movimento que tende a opor a propriedade coletivizada à propriedade privada se exprime de uma forma completamente animal quando contrapõe o casamento (que é, evidentemente, uma forma de propriedade privada exclusiva) à coletivização das mulheres: quando a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da coletivização das mulheres contém o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Assim como a mulher deve abandonar o casamento em prol da prostituição geral, o mesmo deve acontecer com o mundo da riqueza, o qual deve abandonar sua relação de casamento exclusivo com a propriedade privada para abraçar uma nova relação de prostituição geral com a coletividade.
Não bastasse isso, Marx reconhece que
O comunismo grosseiro não é a transcendência da propriedade privada, mas apenas a sua universalização; não é a derrota da ganância, mas apenas sua generalização; não é a abolição do trabalho, mas sim sua ampliação para todos os homens. Destarte, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma na qual toda a abjeção da propriedade privada se torna explícita. […]
Os pensamentos de toda propriedade privada individual são, pelo menos, dirigidos contra qualquer propriedade privada mais abastada, sob a forma de inveja e desejo de reduzir todos a um mesmo nível; destarte, essa inveja e nivelamento por baixo constituem, de fato, a essência da competição. O comunismo vulgar é apenas o paroxismo de tal inveja e nivelamento por baixo, baseado em um mínimo preconcebido.
E completa,
Eis a razão por que todos os sentimentos físicos e morais foram substituídos pela simples alienação trazida pela sensação da posse. A essência humana deveria mergulhar em uma pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a sua riqueza interior!
Infelizmente, Rothbard utiliza muito fontes secundárias, porque sua interpretação é absolutamente bizarra. No texto original, ele utiliza ostensivamente o trabalho de Robert Tucker para basear as próprias posições (os trechos em que ele fala de Tucker foram omitidos na versão freestyle do Mises Brasil).
Marx descreve o comunismo grosseiro nesses termos porque ele o contrapõe a seu comunismo científico. Segundo Marx, o comunismo grosseiro leva a esses resultados repulsivos porque ele não significa o fim da propriedade privada, mas sua transformação em propriedade comum.
Você não precisa acreditar em mim. Você pode buscar as fontes primárias. No caso, trata-se de um manuscrito de Marx que foi citado por David Riazanov em seu livro A doutrina comunista do casamento.
[Tive] a sorte de encontrar um manuscrito de Marx onde ele critica esse comunismo “grosseiro” e “cru” nas suas relações não somente com a propriedade privada em geral, mas também com o casamento. Excuso-me de aprofundar numa longa citação:
Considerando a propriedade privada, na sua geração, o comunismo é na sua forma primitiva a generalização e a abolição da propriedade privada. Em relação a essa abolição, há dois aspectos: de um lado, ele sobrestima o papel e a dominação da propriedade material de um ponto de vista tal que ele quer destruir tudo o que não pode trazer a fortuna e a propriedade privada de todo o mundo; ele quer suprimir pela violência as capacidades particulares, etc. A posse física imediata surge aos seus olhos como o principio único da vida: a forma de atividade do trabalhador não é abolido desse estado, mas estende-se a todos os homens.
A instituição da propriedade privada continua sendo a relação da coletividade no mundo das coisas; e esse movimento que tende opor à propriedade privada a propriedade privada tornada comum, se exprime de uma forma completamente animal, quando opõe ao casamento (que é, evidentemente uma forma de propriedade privada exclusiva) a comunidade das mulheres: quando, por conseguinte, a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da comunidade das mulheres revela o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Do mesmo modo que a mulher abandona o casamento pelo reino da prostituição geral, assim também o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetivada do homem, passa do estado de casamento exclusivo com a propriedade privada à prostituição geral com a coletividade. A prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição geral do operário, e como a prostituição se estende não somente ao prostituido, mas também ao prostituinte (cuja abjeção torna-se ainda maior), o capitalista também está incluído nessa categoria, etc. Esse comunismo que nega em toda parte a personalidade humana, não é senão uma expressão consequente da propriedade privada da qual ela própria é essa negação.
A mulher considerada como presa e como objeto que serve para satisfazer a concupiscência coletiva exprime a degradação infinita do homem quando só existe para si, pois o mistério entre a relação do homem com o seu semelhante encontra a sua expressão não equivoca, decisiva, franca, nas relações do homem e da mulher e na maneira de encetar essas relações genéricas naturais e diretas.
A relação direta, natural, necessária dos seres humanos é a relação entre o homem e a mulher. Nessa relação genérica natural, a relação entre o ser humano e a natureza representa diretamente a relação do homem com o homem, do mesmo modo que a relação entre os homens representa diretamente a relação do homem com a natureza, atributo natural do homem. Por conseguinte, essa relação manifesta de uma maneira sensível, exteriorizada, a maneira pela qual a essência humana tornou-se natureza para o homem e como a natureza tornou-se a essência humana do homem. Eis porque, baseando-se sobre essa relação, pode-se julgar o grau geral do desenvolvimento do homem. O caráter desta relação nos mostra até que medida o homem tornou-se um ser genérico, até que medida ele tornou-se homem, e até que ponto ele o o compreende. A relação entre o homem e a mulher é a mais natural entre seres humanos. Por conseguinte, vê-se até que ponto o comportamento natural do homem tornou-se humano, e até que ponto a essência humana tornou-se para ele a essência natural, até que ponto sua natureza humana tornou-se natureza para ele. Essa relação lembra também a que ponto a necessidade do homem tornou-se uma necessidade humana, isto é, até que ponto um outro ser humano tornou-se para ele uma necessidade, como homem. Lembra que na sua existência individual é ao mesmo tempo um ser social. Assim, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma onde se manifesta a abjeção da propriedade privada que quer afirmar-se ela própria como maneira de ser social positivo”.
Embora Marx certamente seja difícil de ler e interpretar, parece claro que Marx se opunha ao comunismo grosseiro. Para ele, não se tratava do primeiro estágio da revolução, mas de um sistema comunista inferior comparado ao seu próprio. Por que era inferior? Porque, de acordo com ele, levaria a uma “vulgarização” da propriedade privada, não a sua abolição. Ele não superaria o trabalho, mas transformaria todos em trabalhadores; não aboliria o casamento enquanto propriedade, mas generalizaria as relações de casamento (que levariam à prostituição geral).
Além disso, Marx, apesar dos argumentos de Rothbard, parece bastante sensível ao fato de que o comunismop que ele descreve levaria à necessidade do emprego de violência para suprimir a personalidade individual. Novamente, Rothbard (provavelmente seguindo Robert Tucker), interpretou o exato oposto do que Marx quis dizer.
Como eu disse no começo, me sinto um tanto estranho ao ter que escrever um texto como este, já que não sou marxista. Porém, sinto a necessidade de corrigir as falsas informações compartilhadas, principalmente quando elas são frequentemente trazidas para o debate em círculos libertários e anarquistas de mercado.
Nós não precisamos nem mesmo evitar críticas ao trecho que Rothbard citou.
Podemos dizer que a distinção entre o comunismo grosseiro e o científico é absurda; que sua versão do comunismo traria os mesmos problemas que ele descreveu; que acabar com toda a propriedade privada é um absurdo.
Mas não devemos dizer que ele defendeu o comunismo grosseiro, a prostituição geral, o estupro coletivo ou a supressão da personalidade individual. Porque isso ele não fez.
Frequentemente acabamos levados pelas narrativas compartilhadas à exaustão no Twitter e no Facebook. É uma pena que as pessoas sintam a necessidade de recorrer a esses argumentos patéticos, porque, francamente, não é tão difícil encontrar falhas no marxismo.
The Center for a Stateless Society (www.c4ss.org) is a media center working to build awareness of the market anarchist alternative
Source: http://c4ss.org/content/37691
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